terça-feira, 13 de outubro de 2009

Danilo (Relatos)




Capítulo 11. Mau Presságio

É difícil dizer quando isso começou exatamente. Aconteceu muito rápido, e eu percebi tarde demais. Parece que todo mundo percebeu tarde demais.

A propósito, eram dez e meia da manhã quando eu preparava meu desjejum: três pães assados e um copo de café. Não iria matar minha fome – que não era pouca -, mas já estava perto da hora do almoço e por isso não me importei com a quantidade. Depois de comer, fui até a lan house - .net – pesquisar uma baboseira para trabalho. Big era o apelido do cara que costumava atender os clientes no período da manhã. Paguei uma hora e fui acessar a um daqueles PCs cheios de vírus.

Coloquei para baixar o álbum de uma banda de Garage Rock. Talvez seja irrelevante comentar, mas sempre dava alguma merda quando você fazia download de alguma coisa naquela lan. Dessa vez não foi diferente. A janela indicava 93% quando o monitor estalou de repente, e a tela escureceu.

- Porra, que merda foi essa? – Perguntou o cara que estava sentado do meu lado. Eu me segurei para não rir da minha falta de sorte. Ele poderia pensar que eu tava rindo dele, o que não era totalmente mentira. Queda de energia era um troço que acontecia com grande frequência; era uma merda, mas eu não podia fazer nada. Levantei da cadeira. Uma menina perguntou a Big:

- Será que volta rápido?
A cretina perguntou isso. Nunca passou por essa experiência ou então sente prazer de perguntar toda vez que acontece.

- Não sei, visse. - Big respondeu. – Talvez demore a voltar.
Rá! Talvez demore. Senta e espera até amanhã, boyzinha.
Voltei para casa.

No caminho, dei conta de não ter escutado o som de nenhum aparelho de tv e, quando cheguei em casa, não tinha energia. Cacete... Iria me foder por não ter feito o trabalho, mas quem se importava?

Fui ler o livro que eu tinha pedido emprestado a um amigo. Amanhecer era o título, de uma tal de Stephenie Meyer. Desde que li o primeiro, me perguntei por que raios essa mulher não juntou os quatro livros da série em um só, porque a maior parte é enrolação. Para vender mais, é claro. E aquela merda tinha se tornado modinha, era um troço interessante de constatar. Talvez fossem pelos vampiros afrescalhados que brilham sob a luz do sol, ou a própria personagem principal maníaco-depressiva.

Apesar disso, eu lia. Para falar mal de uma coisa dessas é preciso conhecer. E eu já estava no final mesmo. O que é um peido pra quem já está todo cagado? Fiquei jogado na cama, lendo, até a hora do almoço. A energia ainda não tinha retornado, e usei palitos de fósforo para acender o fogão. Minha mãe tinha preparado quase tudo, então só precisei cozinhar algumas batatas para mim. Depois de almoçar, fui ao curso.
Não havia energia lá também.

Não haveria aula. Dia livre... Alguma coisa me intrigava – Que porra tá acontecendo?

No caminho até a parada de ônibus eu escutei partes de conversas. Tudo parecia muito irreal, mas convergia para um único assunto: “Lá em casa faltou energia hoje”.

Essa era a primeira vez que eu desejava chegar lá em casa e ouvir o som de qualquer porcaria que saísse da televisão, até mesmo aqueles programas do ligue para cá e complete a palavra, da redetv.
Mas não aconteceu.
Continuava sem energia. Puta que pariu! Os reptilianos não querem mais controlar a gente?

Tentei não dar tanta importância a isso. Lembrei que tinha acontecido algo parecido havia alguns anos, e não foi apenas uma vez. Porém, costumava acontecer à tarde e durava a noite toda.

Passou um dia... Outro... Mais um. E cadê a luz?

Era impossível se comunicar através da internet, e os telefones estavam mudos. Até por celular estava difícil manter contato. Algumas pessoas comentavam sobre o que poderia estar acontecendo, mas muita coisa do que diziam era fantasiosa o suficiente para não ser levada a sério. Pra piorar, comentava-se que coisas estranhas estavam acontecendo em vários lugares, como Rio Doce, Peixinhos e na praça do arsenal da marinha. Alguns sugeriam que essas coisas estranhas tinham relação com a falta de energia.

Era muita baboseira, mas algumas coisas das quais ouvi me assustaram. Foi numa tarde, quando eu estava conversando com alguns amigos, sentado num dos bancos largos e sinuosos da Praça Alvorada, que ouvi.

- ...Sim, Douglas, aí tu vem citar uma informação de uma merda de slide que tu viu na wikipedia, e quer que eu acredite? – falou um deles.
- E o que tem que seja da wikipedia? – Douglas retrucou. – Isso não quer dizer que a informação não é verdadeira, Matheus. Bota isso na tua cabeça. Assim tu não devia acreditar em nada que digitam lá, né foda.
- E quem disse que eu acredito?
- Ta, Matheus, quero discutir contigo não. Teu pai é foda, ele sabe de tudo mais do que todo mundo, pó.

Aí eu quase que não me aguentei. Aqueles dois viviam em conflito, um não aceitava o que o outro dizia. Era assim quase toda vez que a gente conversava.

Matheus olhou pra mim com cara de quem queria rir mas que achava melhor não. Eu respondi igualmente, e nós três ficamos em silêncio. Alguns segundos depois, quatro caras passaram por nós conversando sobre algo que chamou minha atenção.

- Sério, bicho. Ele disse que o cara tava estranho, os olhos meio avermelhados como se tivesse com conjuntivite. E não dizia nada, só resmungava. Depois o cara pulou em cima de uma senhora e começou a morder ela.
- Ôxi, doido! Que viagem. – respondeu o outro.
- Bote fé. Eu não acreditei muito, não. Mas, porra...

Os caras pararam de andar quando chegaram no muro que cercava o campinho da praça. Dois deles encostaram-se à grade que se estendia em cima do muro, e os outros dois ficaram de frente para eles, de braços cruzados. Continuaram a conversa, mas pouco depois puxaram um papo desinteressante.

- Vocês ouviram? – perguntei a Douglas e Matheus.
- Uhum! – Douglas respondeu. Eu conhecia Douglas de alguns anos. O pessoal costuma o chamar por Noia, um apelido herdado do irmão dele, por assim dizer. Um outro amigo da gente, Marcos, passou a chamá-lo por Noinha, e o negócio pegou. Afinal, eu continuo o chamando pelo nome, como todas as pessoas que conheço. Nunca gostei muito de apelidos. Se eu não souber o nome da pessoa, é inevitável. Mas uma hora tu tem que perguntar a fulano como ele se chama, certo?

- Eu ouvi também. – Matheus respondeu.
- Que vocês acham? – tentei.
- Bicho... – Matheus começou. – eu tô achando que meu pai sabe alguma coisa sobre isso. Ele tá saindo muito, e anda meio estranho.
- Estranho como? – indaguei.
- Tipo, ele tá escondendo alguma coisa. E tá preocupado demais.
- Talvez seja só por causa da falta de energia. – Douglas sugeriu. – Todo munto tá preocupado, pó.
- Ele tá preocupado com isso, sim, mas com outra coisa também. Peguei ele chorando em silêncio, uma vez.

Caralho... Então tinha mesmo alguma coisa acontecendo além do apagão. O que seria? O que o pai de Matheus tinha visto?

A conversa se estendeu, mas não havia nenhuma informação extra. Nem outra conversa interessante para ouvir. Mais uma noite de completa escuridão se ergueu sobre as ruas de Jardim Brasil. As pessoas saíam de suas casas cada uma com uma vela grudada num pires ou no fundo de um copo. Parecia uma procissão. Era ridículo, dessas coisas que só se vê em filmes e livros. Uma rua quase deserta em dias comuns agora parecia uma convocação do Papa numa catedral do Vaticano.

Dormindo eu estava ganhando mais, então fui me deitar. O sono não foi muito agradável. Sonhei que estava sentado no banco da Praça Alvorada e alguma coisa fisgou minha perna. Com o choque da dor, eu sacudi a perna instintivamente e olhei para baixo. Havia um velho abocanhando minha perna, como um cachorro. Tentei chuta-lo, mas não deu em nada. Às vezes parece que a gente perde as forças nos sonhos e fica incapaz de fazer até uma merda fácil dessa.

Chutei de novo. Dessa vez funcionou. O velho largou a perna e cambaleou para trás. Ele tinha arrancado um naco de carne, e minha perna agora ardia horrores. O nojento sorriu com a boca ensanguentada e com carne presa entre os dentes. De repente, ele assumiu a aparência do Papa Bento. Aquilo poderia ser engraçado em outras circunstâncias, mas naquela não era. Para piorar, várias pessoas surgiram por entre as ruas e becos que conduziam à praça. Todas carregando velas. Elas se aproximavam numa lentidão angustiante. Bento engatinhava em minha direção, um sorriso sádico estampando o rosto.

- Vai se foder, seu escroto! – gritei. Eu queria sair dali naquele instante, mas minhas pernas não se movimentavam. Porra, alguma coisa. Por favor.

Comecei a sentir uma pressão no braço. Estava doendo pra burro. A dor aumentou, e parecia não ter limite de subida...

Então acordei, arfando e transpirando feito doido.
Meu braço ainda doía muito, e constatei que era porque eu estava deitado sobre ele. Virei para o outro lado. Que alívio! Apesar de ainda doer, havia um formigamento aliviando a dor aos poucos. Meus batimentos normalizaram. Estendi minha mão para tocar a perna – estava inteira.
Merda. Vai ser foda conseguir dormir de novo.
Estava uma escuridão de breu. Eu fechei os olhos, para tentar dormir de novo, e foi quando aconteceu...

Um barulho de algo quebrando o vidro da janela da sala bruscamente. Meus olhos se arregalaram. Minha mãe, que dormia no quarto ao lado, despejou um grito o qual eu nunca tinha escutado antes – era um grito de horror.
Tateei às cegas, tentando alcançar a estantezinha próxima a cama. Tinha deixado ali uma caixa de fósforos, no alto de uma pilha de livros. Minha mão atingiu uma outra pilha, mais perto da parede. A pilha oscilou, mas não caiu nada. Ali eu podia deslizar os dedos facilmente, para tentar alcançar a caixa de fósforos.

Ouvi outra pancada na sala. Isso foi foda, me assustou de novo. Eu estiquei a mão sobre a outra pilha e acabei derrubando a caixa.

Puta que pariu. Essa porra só acontece comigo.
Esse pensamento me veio por hábito, mas em nenhuma das vezes anteriores eu estava suando frio como naquele instante. As pancadas insistiram dessa vez na parede. Minha mãe suplicava por ajuda, e eu gritei pedindo que se acalmasse. Já era difícil raciocinar tendo que ouvir o barulho de algum viking louco tentando derrubar as paredes da sua casa.

Debrucei-me sobre o chão e tateei freneticamente. Meus dedos roçaram em alguma coisa e a coisa chacoalhou. Deitei a mão ali – era a caixa. Puxei um palito o acendi. A chama fraca iluminou a estantezinha. Ali havia uma vela. Arrebateia- e aproximei o pavio para as chamas, queimando-o. Estendi a vela, indundando o quarto com luz. Meu irmão estava dormindo na outra cama. Na pressa, eu tinha esquecido que ele tava ali. Mas quem imaginaria que o miserável não iria acordar com um barulho daqueles. Qualquer outro dia eu tento com uma britadeira.

- Ei, Elvison! – o sacudi. – Elvison, carai, acorda!
Sacudi com força, e ele acordou.
- Hm? – perguntou. Eu nem me dei ao trabalho de responder. Uma pancada forte na parede fez isso por mim.
- Que porra é essa? – ele perguntou, saltando da cama.
- E eu sei, caralho? Vem, pega esse teu violão velho.
Atravessei a cozinha e peguei a barra de ferro que era usada como travessão na porta. Talvez para dar a sensação de que protegia. Meu pai acreditava naquilo porque era um hábito adquirido na casa dos pais dele.

Pelo menos serviriam dessa vez, mesmo que para um propósito diferente.
A gente se aproximou da sala. A luz da vela conseguia iluminar toda a sala, que era pequena. Tinha vidro espalhado pelo chão e nos sofás. Minha mãe silenciou... Talvez tivesse desmaiado, então não precisei conferir.
A coisa ainda batia na parede e, pelo que pude ouvir, tinha conseguido fazer um buraco.

- Merda... – Sussurrei.
Elvison largou o violão sobre o sofá e retirou a barra de ferro da porta da sala.

Ele estava mais tenso do que eu.
Percebi um movimento lá fora através do buraco da janela. Engoli seco. Um rosto humano apareceu ali, claro como cimento, os olhos vidrados e a boca entreaberta. Um som rouco se desprendeu da garganta dele.
Eu congelei. O que é isso, velho?

Nenhum comentário:

Postar um comentário