quinta-feira, 29 de outubro de 2009

13

Lá dentro, enquanto a gente tentava arranjar um bom lugar no assento, vi que alguém jogava uma luz ali dentro, e por isso dava para ver perfeitamente todo mundo. Mas aí eu já estava com a minha lanterna apontada para a cara deles.

- Ei, porra, desliga isso aí! – Matheus pediu. Era ele quem tava dando a luz, com uma lanterna também.
- Foi mal – desliguei a minha. Olhei para a cadeira do motorista e depois voltei minha atenção para o banco onde eu estava – Seu Alexandre. Dona Gezil. Má hora pra pegar carona, né? – O irmãozinho de Matheus riu. Cumprimentei-o também – Ae, Rudá! Matheus. – cumprimentei o cara também. Meu irmão fez o mesmo com todo mundo, e então tentei descontrair um pouco. O carro tornou a se deslocar, só que agora num ritmo lento. Seu Alexandre pegou à esquerda, na rua que dava para a padaria (esqueci o nome) perto da lan house. Antes de alcançar a metade da rua, uma das laterais da van foi atingida por algo, e sacudiu um pouco. Rudá e Dona Gezil gritaram. Seu Alexandre perdeu o controle do volante, mas recuperou logo. A van deu um solavanco e depois seguiu normalmente. Todos pareciam estar muito tensos para falar alguma coisa. Lá no finalzinho da rua, antes de virarmos à direita para pegar a rua dos mercadinhos, alguma coisa enfiou o braço pela janela entreaberta do motorista. Seu Alexandre freou bruscamente, jogando a gente para frente. Eu meti a cara no espaldar do assento da frente, mas consegui me ajeitar e olhar para a janela a ponto de ver Seu Alexandre descer o vidro e erguer o braço para fora: ele estava apontando um tipo de pistola para a cara da coisa. Era uma pistola de cano muito curto. Bang!

Não teve ninguém ali dentro que não se assustou ao ouvir o disparo.

A coisa recolheu a mão para fora da janela, enquanto a gente tentava se recuperar do susto – pelo menos pelo que pude ver nos rostos dos outros, eles tinham ficado tão assustados quanto eu. Seu Alexandre se desculpou por ter feito aquilo ali dentro e perto de todo mundo, e disse que foi necessário. A gente assentiu; quem iria falar algo numa hora daquelas? Eu não tava afim.

Depois ele finalmente virou à direita na rua dos mercadinhos. O farol do carro iluminou as casas enfileiradas ao longo da rua. Vi um cara atravessando a porta da lan house e parando na calçada. Eu reconheci o sujeito, mas Matheus foi mais rápido quando falou: - Ei! Kerekexe! [1] Para a van aí, painho.

Seu Alexandre continuou lentamente até parar, mas, antes de se aproximar do cara e descer totalmente o vidro, ele murmurou algo para Matheus, num volume que com certeza não dava para Kerekexe ouvir. – Meu filho, a gente não sabe se ele foi infectado. É preciso ter cuidado.

A gente se esticou para vê-lo através da janela do motorista. Acho que não era sensato abrir a janela de trás.

- Que foi isso, velho? – Kerekexe perguntou um tanto sobressaltado – Foi o senhor quem atirou?

Ele falava com Seu Alexandre, que respondeu com um sim. Kerekexe estava mesmo assustado, mas eu reparei que ele também estava preparado. Segurava duas pistolas pretas iguaizinhas. Com a experiência que eu tinha adquirido de mangá e de Counter Strike, pude assumir que eram duas Glock. Agora, dizer qual era o calibre, aí eram mais quinhentos.

Enquanto eu contemplava as armas, uma pessoa saiu pela porta da lan house e se juntou a Kerekexe. Ele apertou os olhos para fitar o motorista.

- Opa, quem é? – Levy perguntou a Kerekexe.
- É o pai de Matheus.

Levy lançou um olhar para o banco de trás e reconheceu a gente, a mim e a Matheus. Não conhecia ninguém além de nós dois entre as pessoas que estavam ali. Levy era um cara mais ou menos forte. Tinha a pele morena e uma costeleta metodicamente aparada. Usava uma camiseta preta com o símbolo de uma caveira – o Justiceiro, se não me engano. Ele não parecia ser daqueles caras compulsivos por academia, pelo menos era o que eu achava. Não dava pra conversar com esse tipo de gente, dos que são tarados por academia. Sério, os caras só falam na quantidade de peso que conseguiram levantar no dia tal e ficam de minuto a minuto olhando pros próprios braços, como que com medo que eles diminuam uns dois milímetros de massa, e fazendo um ou outro comentário cretino. Eu achava que Levy não era desses, porque ele conversava com um pessoal gente fina como Marcos e Kerekexe, mas a gente nunca sabe.

Eu queria sair do carro. Dava para ver que nenhum dos dois tinha sido mordido.

- Êita, carai – Kerekexe exclamou – O bicho tá vivo ainda. Bora lá, Levy! – Ele e Levy correram pela rua em direção à padaria. Então começaram a disparar. Eu precisei me esgueirar para trás e mirar a lanterna para enxergar os dois. Só aí eu me liguei numa coisa: a lan house estava iluminada, e a casa de Levy, que ficava acima dela, também. Quando tínhamos chegado ali, eu estava tão assustado ao ponto de não ter percebido isso?

Seu Alexandre saiu da van. Aquilo me pareceu um aval, então eu abri a porta e saí também. Elvison e Matheus saíram em seguida. Apenas Dona Gezil e Rudá ficaram lá dentro. Ela perguntou, retoricamente, se não era melhor ficarmos dentro da van. Eu achava que não, e disse a ela que ficasse tranqüila, que a gente não iria se afastar muito.

Não menti, ficamos apenas alguns passos dela. Seu Alexandre estava só um pouco nossa frente. Matheus apontava a lanterna para o ponto onde Kerekexe e Levy estavam. Eu ainda segurava a barra de metal, assim como meu irmão. A gente não iria fazer muita frente às armas de fogo, e eu nem me sentia inclinado a tentar algo. Estava cansado pra burro. Olhei para as casas enfileiradas dos dois lados da rua. Não havia luz elétrica em nenhuma casa além da que ficava acima da lan. Afinal, os caras retornaram.

- E aí, velho, vocês neutralizaram o bicho? – seu Alexandre perguntou a Levy e a Kerekexe, quando os dois se aproximaram.

- E então – Levy respondeu, e depois meteu a mão no bolso e puxou um cigarro e um isqueiro.

- E aí, velho! – Kerekexe falou isso para Matheus. Eles se cumprimentaram, e depois meu irmão e eu o cumprimentamos. – Beleza?

- Arram – respondi. Ele riu quando viu o que nós dois estávamos usando como arma. Fez um comentário do tipo “carai, tu não é nada grosso hem”. Eu ri. – Fazer o quê, era só o que tinha.

Kerekexe. Esse era um apelido cabuloso de explicar, e não tem mais sentido chama-lo desse jeito. O nome dele é Hugo. Ele é um pouco menos que gordo: não pode ser considerado magro, mas também não tem nenhum hospedeiro na barriga. Hugo costumava ter o cabelo grande. Não grande de caído nas costas; era volumoso e encaracolado e ficava estacionado, crescendo na órbita da cabeça. Alguém, por sinal muito espirituoso, resolveu dar àquilo o nome cabelo de ninho de Kerekexe. Dizem que Kerekexe é o nome de um pássaro, mas eu procurei no dicionário de Aurélio e lá dizia ser o nome de um instrumento musical – o troço é chamado também de canzá. Criativo ou não, o negócio é que a porra do apelido pegou, e até hoje, mesmo o cara mantendo o cabelo sempre curtinho, as pessoas ainda o chamam Kerekexe. Agora só usam a última palavra do apelido. O próprio Hugo disse que até já tentaram diminuir para xereca. Porra!

- Ei, acho melhor vocês entrarem. – Hugo falou para a gente.
Seu Alexandre estava passando os olhos pelas fileiras de casas dos dois lados da rua. Provavelmente estava fazendo o mesmo que eu tinha feito pouco antes, constatando que a lan house e a casa sobre ela eram os únicos lugares – até onde a gente conseguia enxergar de onde estávamos – que tinham luz elétrica.

Afinal, ele perguntou aos caras o porquê. Foi Levy quem respondeu.
- A gente escolheu minha casa – ele apontou para a casa no primeiro andar – pra servir de base pra a gente se organizar contra os zumbis.

Ele disse zumbis. Eu preferia coisa, mas tanto faz o nome que tenham escolhido para aquilo.
- E a gente conseguiu um gerador de energia. – Levy concluiu. Então era isso.
- Na verdade – Hugo interveio – a gente furtou. Mas isso já é outra história. – Eu sorri. Elvison e Matheus também. – Enfim, bora entrando, pessoal. Antes que apareça outro merdinha daquele.

Levy se dirigiu a Seu Alexandre – O senhor trouxe mais alguém na van, não foi?

Eu quase tinha me esquecido dos dois lá dentro. Seu Alexandre foi até a van, abriu a porta e perguntou se estava tudo bem. Ouvi uma resposta. Depois ele se desculpou por tê-los deixado esperando.

Enfim, a gente entrou na casa de Levy – A base. Eu podia ter reparado nos detalhes da casa em si, mas outra coisa me chamou a atenção. Na verdade, aquilo deixou a todos nós com as sobrancelhas lá em cima: havia um arsenal de armas espalhadas por todo canto.

- Não reparem na bagunça. – Levy falou.


Nota
[1]: O nome é Querequexé, mas como o próprio dono do apelido escreve do jeito que tá no texto, eu escolhi deixar do mesmo jeito.

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