sábado, 14 de novembro de 2009

15

A caminhonete investiu em nossa direção. A gente estava quase no meio da rua, e foi preciso a gente correr para a calçada para não sermos atingidos. Ela continuou avançando, e não parou até colidir com o muro da igreja protestante que divisava com a padaria Pandany. A dianteira do veículo ficou esmagada quase que por inteiro. Os dois sujeitos da frente ficaram presos pela ferragem.

Os zumbis que estavam na carroceria saltaram para o chão como se tivessem acabado de descer de uma fila de carrinhos de montanha-russa. Eles transpareciam uma excitação canibalesca; no duro, olhavam pra a gente como se a gente fosse comida.

Apontei para a cabeça de um deles e apertei o gatilho, mas a arma deu uma guinada para cima e o projétil passou longe do alvo. “Merda”. Os outros começaram a atirar. Hugo atirava com uma destreza absurda. Ele apontava uma das pistolas na direção dos zumbis, enquanto mantinha a outra com o cano apontado para o céu, e atirava. Então fazia a mesma ação com a outra mão, e mantinha esse padrão. Ela fazia aquilo bem rápido, e enquanto eu dividia minha atenção entre o jeito como ele manipulava as armas e as contorções súbitas dos zumbis que eram atingidos pelos projéteis, eu constatei que a diferença entre a gente era tão grande que ele podia ser considerado um heroi naquela circunstância. No duro, sem puxar o saco.

Matheus e Elvison também atiravam, mas eles erravam quase todos os disparos. Cada um deve ter acertado em média uns dois tiros entre nove. Eles pararam por aí, porque todos os zumbis já estavam estirados no asfalto. Nem chegaram a substituir o pente: a coronha da glock suporta dez balas. Eu usei apenas uma.

Afinal, quando nos certificamos de que os alvos estavam todos no chão, Hugo suspirou e apoiou os punhos cerrados na cintura. – Porra, eu disse para vocês não desperdiçarem bala, seus comédias.

Ele deve ter usado todos os vinte projéteis. Se ele errou algum disparo, não percebi. Levy apareceu atravessando a porta da casa.

- Porra! Foi só eu sair para beber água... – Não sei se ele estava espantado com a aparição de zumbis num intervalo de tempo tão curto, enquanto estava lá dentro, ou se decepcionado por não ter chegado a tempo de enfiar algumas balas neles.

- Esses três tão precisando de umas aulinhas, Levy. – Hugo falou, referindo-se, a quem mais senão a nós três que não tínhamos aprendido nada com CS ou com Medalha de Honra? - Tá foda.

- Mermão – Matheus interferiu – é só questão de prática.

Hugo e Levy sorriram.

- O que não vai faltar é oportunidade pra praticar – disse Levy. Não era nada que a gente não soubesse. Pô, como poderiam se divertir com aquilo? Acho que eles estavam perdendo o tino.

- Ei – foi Douglas chamando a atenção de Hugo – arrumem dessas pra a gente, velho?

Ele se referia às armas, claro. Para ele e Tiago. Ótimo, pensei. Mais dois pra desperdiçar bala.

Hugo subiu sozinho para escolher o que iria emprestar a eles. Já tinha concordado com Levy que era melhor todos saberem atirar logo, pra evitar estorvos.

Afinal, estávamos todos armados como soldados preparados para uma guerra, malgrado a ausência de coletes e capacetes. Iríamos fazer uma “caminhada de reconhecimento”, para saber onde havia zumbis e quais áreas estavam livres. Eu tinha comido bastante. O mercadinho Tavares tinha sido violado, a entrada estava destruída, e a gente furtou alimentos. Fizemos o mesmo no mercadinho Central. Mas que fique claro: só arrombamos a entrada do primeiro. A do segundo já estava obstruída quando chegamos. E a conduta da gente não podia ser questionada nas circunstâncias em que estávamos. Era roubar ou morrer de fome.

Os grupos estavam prontos para a caminhada. Deixamos a Base, carregando bolsas com as coisas necessárias: pentes de bala, comida e água. Um dos grupos, com Hugo, Matheus e Tiago, seguiu em direção à rua do bar do pantanal. O outro grupo, eu Elvison, Levy e Douglas, seguimos até o final da rua, perto do Mega Pastel. Não havia um pé de gente ali, mas era possível ouvir ruídos. Vozes humanas, gritos, todos vindos da rua perpendicular à qual estávamos, e da qual estávamos separados pela Avenida Antônio da Costa Azevedo. Atravessamos a avenida e adentramos a rua. Ao passarmos da esquina, confirmamos.

Lá longe, mais ou menos na metade da rua, era possível ver uma concentração de pessoas caminhando em nossa direção. Não que eles estivessem vindo porque viram a gente: estavam se deslocando naquela direção antes mesmo de colocarmos a cara ali. Era impossível distinguir quem era gente e quem era zumbi àquela distância, então, por unanimidade, decidimos nos aproximar deles pela rua que se apresentava paralela àquela, à esquerda. Pegamos àquela rua e fomos adiante. Pretendíamos dobrar na primeira ruazinha que interligasse as duas, mas, após termos avistado uma, fomos compelidos a desistir desse intento: dois indivíduos irromperam por ela e vieram correndo em nossa direção. Levy ergueu a arma instintivamente, mas eu reconheci aquelas pessoas e pedi que ele parasse. Não estavam infectados, pois corriam normalmente e suas fisionomias eram completamente humanas.

- Caralho, bicho! - gritou um deles, parando de correr assim que nos alcançou. Era Raphael (oreia). Um cara baixinho e truncado. O outro parou pouco depois: era Aleson. Mais alto que o primeiro, porém mais magro, e usava boné.

- Deu o carai! – ele exclamou, quando viu o que a gente tava carregando. Raphael gritou “ei” e apontou para a rua de onde eles tinham saído: um grupo de zumbis irrompeu dali e se espalhou pela rua em que estávamos.

- Ei, porra, bora vazar daqui – Aleson pediu. – Vamo lá pra casa. A gente fez uma base lá.

Levy falou.
- Vocês não têm armas?
- Só duas, e alguns pentes. Meu pai e meu irmão tão usando elas.
- A gente vai dar um saca lá então. É longe?
- Não. Bora logo, pô!

Saímos dali antes que fôssemos alcançados pelos zumbis. Corremos rumo à casa de Aleson. Ao chegarmos à artol, vimos algo que nos deixou meio enjoados: corpos estirados no asfalto e em algumas calçadas, recostados aos muros, e havia sangue espalhado por tudo o que era canto. Retomamos a caminhada e chegamos a casa. Ela ficava em frente para uma padaria e ao lado da igreja católica conhecida como matriz, da qual ficava separada apenas por uma rua. Os muros da casa envolviam uma área bem extensa. Aleson abriu o portão e entramos.

Eu já conhecia o lugar, assim como meu irmão. A casa em si ocupava um espaço pequeno na grande área delimitada pelos muros. Havia um telhado alto erguido por colunas de concreto e madeira, e sob o qual se encontravam estacionados uns dois carros de aspecto tão velho quanto o das paredes descascadas da casa. Adriel, irmão mais velho de Aleson, e o pai dele estavam sentados em frente a uma saleta que ficava ao fundo da propriedade. A saleta atrás deles costumava ser usada para ensaios. Os irmãos tocavam baixo; um deles tocava na banda da igreja e o outro era músico profissional.

Adriel e o pai dele vieram nos receber.

- Ae! Deu o carai – foi o que Adriel falou quando se aproximou da gente.
- Eu to bem, e tu? – respondi, sorrindo.
- Os caras tão preparados. – emendou o pai de Adriel.

A gente conversou. Levy falou a eles sobre a outra base, explicou a respeito das armas e disse onde eles poderiam conseguir algumas e também munição.

Alguma coisa vibrou dentro da bolsa de Levy. Ele retirou um comunicador e pressionou um botão que havia nele, enquanto aproximava-o ao ouvido.

- Fala!... Sim. A gente encontrou uma base... Hem? Sério?... Beleza. Tô indo aí. – desligou.

Explicou para a gente que Hugo e os outros tinham encontrado uns zumbis perto do apartamento onde ele morava. Eles conseguiram dar conta, porque não eram muitos, depois subiram para pegar alguns pentes. Levy tirou da bolsa uma arma parecida com uma Bereta (estilo Worms) e alguns cartuchos e entregou-a ao pai de Aleson. Depois olhou para a gente.

- Cuidado ae, pessoal. Aprendam a atirar logo, carai.
Saiu.

Ficamos sentados esperando alguma mudança enquanto conversávamos. Tudo estava calmo durante algumas horas, e então aconteceu.

Um burburinho se propagou distante. Vozes estranhas e roucas, cujo volume aumentava com o avanço dos minutos e nos deixavam nervosos. Num certo momento as vozes se tornaram berros e sentimos o chão vibrar com os passos mórbidos daquelas criaturas – eles estavam passando bem em frente à base.

A gente se posicionou com as armas já preparadas. Ouvimos o ruído de uma pancada no portão de metal. Outra pancada. Uma mãozinha pousou no alto do muro, e uma cabeça emergiu pouco depois.

Eu atirei, tentando acertar a cabeça, mas errei. O projétil acertou o muro, perto da mão do zumbi, e arrancou um pedaço de concreto. “Melhorei um pouco” pensei. Outras cabeças irromperam ao longo do cimo do muro. Precisamos nos aproximar para evitarmos o desperdício de balas. Então metemos fogo.

Depois de alguns disparos, eu aprendi a controlar as guinadas consequentes da propulsão empregada nos projéteis. Desse jeito, eu passei a errar pouco. Mas foi preciso gastar quase três cartuchos.

O sangue fluía profusamente da cabeça dos zumbis atingidos, e escorregava pelo muro, formando uma pintura maldita. Se derrubássemos dez deles, outros dez os substituíam, e, em determinado momento, naturalmente, meus pentes acabaram. Douglas tinha acabado com os dele um pouco antes. Só restavam Adriel, o pai dele e Elvison. Depois de esse último disparar três vezes, a munição dele acabou. Dois zumbis conseguiram se infiltrar saltando o muro por um dos lados da casa. Adriel gastou algumas balas neles, e sua munição também acabou.

Olhei para o primeiro andar da casa de Aleson. Foi para lá que eu me arrastei, junto com Aleson e os outros. Atravessamos a porta.

Enquanto subíamos o lance de escadas, ouvíamos os dois últimos disparos da bereta. Depois só havia o farfalhar dos zumbis saltando o muro e, por fim, a batida das portas da frente e dos fundos da casa sendo trancadas por Adriel e o pai dele.

Agora era questão de tempo até aqueles desgraçados conseguirem derrubar as portas da casa e invadirem-na. A gente usou aquele tempo para observar da janela do quarto no primeiro andar quantos zumbis ainda restavam para então pensarmos no que fazer.

Foi aí que eu fiquei desesperado: ainda tinha um rebanho deles espalhado pela rua.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

14


Levi e Hugo nos contaram como conseguiram as armas. Era no mínimo curioso o fato de eles terem conseguido um gerador de energia e armas de fogo de diversos calibres. Não só pistolas, mas também rifles. Rifles. A curiosidade atingiu a quase todos nós, principalmente ao Seu Alexandre, que aparentava ter conhecimento sobre algumas daquelas armas. Ele detinha-se a observá-las com um vagar de quem parece saber muito mais do que se supunha que soubesse. Explicava minuciosamente às dúvidas do seu filho mais novo, respondendo até mais do que ele perguntava.


Enquanto observava os rifles e pistolas, eu avistei um sofá vazio. Cara, aquilo parecia o paraíso. Vazio. Lembro de ter dito a Levy algo sobre estar precisando deitar e dormir. Tombei no sofá e não me recordo de nada do que aconteceu depois disso. Tive um sono profundo e sem sonhos. Só um barulho distante me incomodou, mas era quase imperceptível. Outros sons se misturaram àquele barulho, provocando um ruído alto. Afinal eu acordei.


- ... erta os caras, carai. – alguém gritou.

- Eu não vi, porra! Eles tavam na minha mira. – Hugo replicou.

- Bora descer!


Eu saltei do sofá e vi Hugo e Levy correndo para as escadas, armados. Os outros continuavam ali, exceto os pais e o irmão de Matheus. Ele e Elvison estavam debruçados no peitoril da janela, observando alguma movimentação na rua. Eu me juntei a eles. Já era dia. Cacete, como passou rápido. O objeto de curiosidade era um grupo de pessoas brigando ao lado do Mercadinho Tavares. Pelo que pude ver, eram três zumbis contra dois caras. Limpei os olhos para enxergar melhor: os dois caras brigando com os zumbi eram Tiago (Venta) e Douglas (Noinha). Tiago tava usando como arma o que parecia ser uma chave de cano vermelha do tamanho do braço dele. Douglas tava usando... um pedaço de pau. Hugo e Levy apareceram lá embaixo e gritaram pedindo para que os dois saíssem de perto dos zumbis, que eles iriam atirar. Douglas e Tiago não hesitaram e correram para a rua em direção ao mercadinho Central. Os outros começaram a atirar. Houve uma ruído filho da puta de tiros repetitivos. Nós três que estávamos olhando da janela fomos forçados a tapar os ouvidos, tão alto era o barulho. Eu já estava começando a ficar perturbado com as matanças. Quando aquela merda iria acabar? Perguntava a mim mesmo, numa tentativa de me acalmar, e me lembrava de que aquilo era só o começo do dia.


Os disparos cessaram. Os três zumbis estavam estirados na calçada do mercadinho, tingida com o sangue deles. O mesmo sangue que escorregava no meio-fio e se perdia dentro duma boca-de-lobo.


Estremeci.

Matheus me chamou a atenção e me mostrou as armas que Levy tinha separado para a gente. Três pistolas semi-automáticas, e seis cartuchos, além dos que estavam nas armas.


Então seria assim dali pra frente.

Descemos as escadas. Precisávamos ter muito cuidado com as semi-automáticas, pois estavam já no ponto para disparar os projéteis.


Lá embaixo encontramos Douglas e Tiago conversando com os matadores.


- Deu o carai! – foi a reação de Douglas ao ver a gente com as Glock. Tiago reagiu com surpresa também, e soltou um “porra” prolongado, abafando a boca com a mão.


A gente conseguiu sorrir.

- Que arma do carai! – Elvison falou, referindo-se à chave de cano na mão de Tiago. – Gostei.

- É, e eu gostei da sua. Vamo trocar?

- Pois eu prefiro a arma de Douglas – Matheus disse – Dá pra furar um olho, né.


A arma de Douglas era um cabo de vassoura partido. A gente riu. Era um troço estranho conseguir rir com três corpos estirados bem do outro lado da rua e o cheiro forte de sangue. De qualquer forma, eu me sentia menos perturbado quando conseguia sorrir.


- Ei, eu vou lá dentro beber água – Levy disse. – Fiquem de olho aí, velho. Se aparecer mais daqueles putos não deixem Kerekexe atirando sozinho, não.

- Beleza – Matheus respondeu prestativo. Aproveitei e perguntei a ele aonde os pais e o irmão dele tinham ido. Ele respondeu que na casa duma tia aí. Fiquei surpreso que ele tivesse conseguido dissuadir o pai de arrastá-lo junto. Ainda mais depois de seu Alexandre ter visto a caralhada de armas que estavam espalhadas na casa de Levy.


Comecei a pensar na minha avó, não sei por que. Ela costumava ir lá em casa para conversar com a minha mãe. Era sempre a mesma conversa: mesmo que mudasse o tema, a estrutura da conversa não mudava, como se ela mudasse os nomes dos personagens e contasse a mesma história. E isso quando ela não contava mesmo uma coisa tinha contado. Minha mãe sempre olhava para mim e suspirava um “lá vem” quando ela começava a falar, porque já sabia o que estava por vir. Para melar ainda mais, como se não fosse ruim o suficiente ter que ouvir aquilo tudo, minha avó sempre se queixava de uma dor na têmpora esquerda, que ela enfatizava deslizando o dorso da mão do alto da cabeça até o pescoço. Sempre que falava dessa dor, ela fazia isso com a mão e apertava os olhos e tudo.


Minha divagação foi interrompida por um ruído de pneus no final da rua. Uma caminhonete vinda da rua do posto de saúde se aproximava de um jeito estranho, num ziguezague muito louco: o cara dirigia mal pra cacete. Enquanto a caminhonete se aproximava, eu pude ver que haviam uns caras em pé na caçamba, apoiando os braços no teto. Toda vez que o motorista fazia uma barbeiragem, virando prum dos lados da rua e freando, os caras perdiam o equilíbrio mas não caíam nem nada. Então eles começavam a rir. Os cretinos riam que nem umas hienas, e alto pra cacete, quando aquilo acontecia.


Havia mais gente sentada na caçamba e um no banco do carona. Quanto mais próxima da gente a caminhonete ficava, mais alto se tornavam as risadas, e a fisionomia deles só ficou clara quando o veículo já estava passando em frente ao mercadinho Central.


Aqueles caras...

Eram zumbis.


- Galera – Hugo começou. – na cabeça e no joelho. Não desperdicem balas, por favor.

Tá beleza, Hugo. Primeiro eu vou tentar acertar.