quinta-feira, 29 de outubro de 2009

13

Lá dentro, enquanto a gente tentava arranjar um bom lugar no assento, vi que alguém jogava uma luz ali dentro, e por isso dava para ver perfeitamente todo mundo. Mas aí eu já estava com a minha lanterna apontada para a cara deles.

- Ei, porra, desliga isso aí! – Matheus pediu. Era ele quem tava dando a luz, com uma lanterna também.
- Foi mal – desliguei a minha. Olhei para a cadeira do motorista e depois voltei minha atenção para o banco onde eu estava – Seu Alexandre. Dona Gezil. Má hora pra pegar carona, né? – O irmãozinho de Matheus riu. Cumprimentei-o também – Ae, Rudá! Matheus. – cumprimentei o cara também. Meu irmão fez o mesmo com todo mundo, e então tentei descontrair um pouco. O carro tornou a se deslocar, só que agora num ritmo lento. Seu Alexandre pegou à esquerda, na rua que dava para a padaria (esqueci o nome) perto da lan house. Antes de alcançar a metade da rua, uma das laterais da van foi atingida por algo, e sacudiu um pouco. Rudá e Dona Gezil gritaram. Seu Alexandre perdeu o controle do volante, mas recuperou logo. A van deu um solavanco e depois seguiu normalmente. Todos pareciam estar muito tensos para falar alguma coisa. Lá no finalzinho da rua, antes de virarmos à direita para pegar a rua dos mercadinhos, alguma coisa enfiou o braço pela janela entreaberta do motorista. Seu Alexandre freou bruscamente, jogando a gente para frente. Eu meti a cara no espaldar do assento da frente, mas consegui me ajeitar e olhar para a janela a ponto de ver Seu Alexandre descer o vidro e erguer o braço para fora: ele estava apontando um tipo de pistola para a cara da coisa. Era uma pistola de cano muito curto. Bang!

Não teve ninguém ali dentro que não se assustou ao ouvir o disparo.

A coisa recolheu a mão para fora da janela, enquanto a gente tentava se recuperar do susto – pelo menos pelo que pude ver nos rostos dos outros, eles tinham ficado tão assustados quanto eu. Seu Alexandre se desculpou por ter feito aquilo ali dentro e perto de todo mundo, e disse que foi necessário. A gente assentiu; quem iria falar algo numa hora daquelas? Eu não tava afim.

Depois ele finalmente virou à direita na rua dos mercadinhos. O farol do carro iluminou as casas enfileiradas ao longo da rua. Vi um cara atravessando a porta da lan house e parando na calçada. Eu reconheci o sujeito, mas Matheus foi mais rápido quando falou: - Ei! Kerekexe! [1] Para a van aí, painho.

Seu Alexandre continuou lentamente até parar, mas, antes de se aproximar do cara e descer totalmente o vidro, ele murmurou algo para Matheus, num volume que com certeza não dava para Kerekexe ouvir. – Meu filho, a gente não sabe se ele foi infectado. É preciso ter cuidado.

A gente se esticou para vê-lo através da janela do motorista. Acho que não era sensato abrir a janela de trás.

- Que foi isso, velho? – Kerekexe perguntou um tanto sobressaltado – Foi o senhor quem atirou?

Ele falava com Seu Alexandre, que respondeu com um sim. Kerekexe estava mesmo assustado, mas eu reparei que ele também estava preparado. Segurava duas pistolas pretas iguaizinhas. Com a experiência que eu tinha adquirido de mangá e de Counter Strike, pude assumir que eram duas Glock. Agora, dizer qual era o calibre, aí eram mais quinhentos.

Enquanto eu contemplava as armas, uma pessoa saiu pela porta da lan house e se juntou a Kerekexe. Ele apertou os olhos para fitar o motorista.

- Opa, quem é? – Levy perguntou a Kerekexe.
- É o pai de Matheus.

Levy lançou um olhar para o banco de trás e reconheceu a gente, a mim e a Matheus. Não conhecia ninguém além de nós dois entre as pessoas que estavam ali. Levy era um cara mais ou menos forte. Tinha a pele morena e uma costeleta metodicamente aparada. Usava uma camiseta preta com o símbolo de uma caveira – o Justiceiro, se não me engano. Ele não parecia ser daqueles caras compulsivos por academia, pelo menos era o que eu achava. Não dava pra conversar com esse tipo de gente, dos que são tarados por academia. Sério, os caras só falam na quantidade de peso que conseguiram levantar no dia tal e ficam de minuto a minuto olhando pros próprios braços, como que com medo que eles diminuam uns dois milímetros de massa, e fazendo um ou outro comentário cretino. Eu achava que Levy não era desses, porque ele conversava com um pessoal gente fina como Marcos e Kerekexe, mas a gente nunca sabe.

Eu queria sair do carro. Dava para ver que nenhum dos dois tinha sido mordido.

- Êita, carai – Kerekexe exclamou – O bicho tá vivo ainda. Bora lá, Levy! – Ele e Levy correram pela rua em direção à padaria. Então começaram a disparar. Eu precisei me esgueirar para trás e mirar a lanterna para enxergar os dois. Só aí eu me liguei numa coisa: a lan house estava iluminada, e a casa de Levy, que ficava acima dela, também. Quando tínhamos chegado ali, eu estava tão assustado ao ponto de não ter percebido isso?

Seu Alexandre saiu da van. Aquilo me pareceu um aval, então eu abri a porta e saí também. Elvison e Matheus saíram em seguida. Apenas Dona Gezil e Rudá ficaram lá dentro. Ela perguntou, retoricamente, se não era melhor ficarmos dentro da van. Eu achava que não, e disse a ela que ficasse tranqüila, que a gente não iria se afastar muito.

Não menti, ficamos apenas alguns passos dela. Seu Alexandre estava só um pouco nossa frente. Matheus apontava a lanterna para o ponto onde Kerekexe e Levy estavam. Eu ainda segurava a barra de metal, assim como meu irmão. A gente não iria fazer muita frente às armas de fogo, e eu nem me sentia inclinado a tentar algo. Estava cansado pra burro. Olhei para as casas enfileiradas dos dois lados da rua. Não havia luz elétrica em nenhuma casa além da que ficava acima da lan. Afinal, os caras retornaram.

- E aí, velho, vocês neutralizaram o bicho? – seu Alexandre perguntou a Levy e a Kerekexe, quando os dois se aproximaram.

- E então – Levy respondeu, e depois meteu a mão no bolso e puxou um cigarro e um isqueiro.

- E aí, velho! – Kerekexe falou isso para Matheus. Eles se cumprimentaram, e depois meu irmão e eu o cumprimentamos. – Beleza?

- Arram – respondi. Ele riu quando viu o que nós dois estávamos usando como arma. Fez um comentário do tipo “carai, tu não é nada grosso hem”. Eu ri. – Fazer o quê, era só o que tinha.

Kerekexe. Esse era um apelido cabuloso de explicar, e não tem mais sentido chama-lo desse jeito. O nome dele é Hugo. Ele é um pouco menos que gordo: não pode ser considerado magro, mas também não tem nenhum hospedeiro na barriga. Hugo costumava ter o cabelo grande. Não grande de caído nas costas; era volumoso e encaracolado e ficava estacionado, crescendo na órbita da cabeça. Alguém, por sinal muito espirituoso, resolveu dar àquilo o nome cabelo de ninho de Kerekexe. Dizem que Kerekexe é o nome de um pássaro, mas eu procurei no dicionário de Aurélio e lá dizia ser o nome de um instrumento musical – o troço é chamado também de canzá. Criativo ou não, o negócio é que a porra do apelido pegou, e até hoje, mesmo o cara mantendo o cabelo sempre curtinho, as pessoas ainda o chamam Kerekexe. Agora só usam a última palavra do apelido. O próprio Hugo disse que até já tentaram diminuir para xereca. Porra!

- Ei, acho melhor vocês entrarem. – Hugo falou para a gente.
Seu Alexandre estava passando os olhos pelas fileiras de casas dos dois lados da rua. Provavelmente estava fazendo o mesmo que eu tinha feito pouco antes, constatando que a lan house e a casa sobre ela eram os únicos lugares – até onde a gente conseguia enxergar de onde estávamos – que tinham luz elétrica.

Afinal, ele perguntou aos caras o porquê. Foi Levy quem respondeu.
- A gente escolheu minha casa – ele apontou para a casa no primeiro andar – pra servir de base pra a gente se organizar contra os zumbis.

Ele disse zumbis. Eu preferia coisa, mas tanto faz o nome que tenham escolhido para aquilo.
- E a gente conseguiu um gerador de energia. – Levy concluiu. Então era isso.
- Na verdade – Hugo interveio – a gente furtou. Mas isso já é outra história. – Eu sorri. Elvison e Matheus também. – Enfim, bora entrando, pessoal. Antes que apareça outro merdinha daquele.

Levy se dirigiu a Seu Alexandre – O senhor trouxe mais alguém na van, não foi?

Eu quase tinha me esquecido dos dois lá dentro. Seu Alexandre foi até a van, abriu a porta e perguntou se estava tudo bem. Ouvi uma resposta. Depois ele se desculpou por tê-los deixado esperando.

Enfim, a gente entrou na casa de Levy – A base. Eu podia ter reparado nos detalhes da casa em si, mas outra coisa me chamou a atenção. Na verdade, aquilo deixou a todos nós com as sobrancelhas lá em cima: havia um arsenal de armas espalhadas por todo canto.

- Não reparem na bagunça. – Levy falou.


Nota
[1]: O nome é Querequexé, mas como o próprio dono do apelido escreve do jeito que tá no texto, eu escolhi deixar do mesmo jeito.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

12

Elvison enfiou uma das extremidades da barra de ferro na cara da coisa. Vou chamar de coisa porque eu não tenho um nome para aquilo. Acho zumbi muito clichê. A coisa caiu com o golpe. Adiantei-me para a estante da televisão e peguei as chaves. Pedi para meu irmão segurar a vela, para que eu pudesse abrir a grade. Não queria ficar trancado com aquela coisa quando ela conseguisse entrar. Após abrir a grade, larguei as chaves na fechadura e voltei para a estante para pegar a lanterna que meu pai costumava deixar ali. Meu irmão já estava lá fora. Fui até lá, correndo. A coisa estava de pé novamente, e começou a vir na nossa direção sem hesitar sequer um passo. Era um pouco mais alto que eu e tinha os cabelos pretos e curtos. Com certeza eu nunca o vira antes. Movimentava-se tão bem quanto qualquer humano saudável, ou talvez até melhor. No duro, o cara era rápido.

Meu irmão tentou acertar a cabeça dele com a barra de metal. A coisa se defendeu com o braço. Foi uma reação instintiva, igual como fazemos quando jogam algo na gente. Ele empurrou a barra bruscamente, tirando-a do caminho, e avançou para meu irmão, empurrando-o contra a grade. A chama da vela apagou, e só restava a luz da lanterna que eu mirava para os dois. Sem pensar muito, meti a barra de metal nas pernas do desgraçado. Com sorte, consegui derrubá-lo. Meu irmão largou a vela, segurou a barra com as duas mãos e começou a bater na coisa. Juntei-me a ele. Depois que comecei, eu não conseguia pensar em outra coisa.

Bater.

Minha mente estava toldada pela visão do rosto assustador da coisa e pelo som furioso emitido por ela.

Então, quando senti dormência no braço, eu parei. Encostei-me no muro pequeno de casa. Meu irmão parou um pouco depois. Ficamos observando a coisa enquanto ela se contorcia e gemia incapaz de se levantar. A gente deve ter quebrado quase todos os ossos da perna dela. Segurei-a pelo braço e pedi para Elvison segurar o outro, então arrastamos a coisa e encostamo-la na parede.

Focalizei meu irmão. Ele estava desgastado pra burro, precisava dormir mais do que eu. Enquanto o observava com a luz da lanterna oscilando, eu vi alguma coisa se mover entre as barras da grade, acima do ombro dele. Estreitei os olhos. Aquilo deslizou para fora e pousou no pescoço dele. Era uma mão pálida.
A mão o puxou bruscamente, antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, e bateu a cabeça dele na grade, depois o largou, e ele caiu como um saco de batatas. A mão se recolheu para e escuridão. Não desviei a lanterna, estava aterrorizado. Um rosto surgiu na luz, e eu reconheci. Mas não queria acreditar – era minha mãe.

- Não... – sussurrei. Os olhos dela estavam diferentes, vidrados. Estava sorrindo de um jeito que parecia insano. Uma figura emergiu das sombras e se posicionou ao lado dela. Era parecido com o cara caído no chão, e eu também não o conhecia.

Ele deve ter entrado na hora em que ouvi o barulho de parede sendo destruída. E eu pensando que ela tinha desmaiado mesmo. O que eu podia fazer com aqueles dois? Será que eu teria coragem de bater na minha mãe, mesmo ela estando transformada naquela coisa? Que terrível... Olhei para o cara. Eu estava muito puto. Ele era culpado por aquilo. Eu queria cortar a garganta dele, mas pena não poder entrar e pegar uma faca. Tudo bem, estava satisfeito em espancá-lo até a morte – ou o que quer que acontecesse àquelas criaturas quando eram espancadas como eu pretendia fazer. Ele veio primeiro, para minha sorte. Ótimo, era isso o que eu queria, filho da puta. Tu vai ver só, não devia ter metido teu traseiro por essas bandas.

Segurei a lanterna entre os dentes e, com as duas mãos, girei o bastão de metal em direção à cabeça dele. O miserável colocou o braço no caminho, fazendo o bastão desviar nele. Mas a força que eu botei no golpe o empurrou e o fez perder equilíbrio. Aproveitei a chance e desci o bastão nas pernas dele, derrubando-o. Se aquilo fosse uma brincadeira, eu teria até inventado um nome pra esse golpe. Mas o negócio era sério. Bati na cabeça do filho da puta, sem dó. Espanquei também os braços e as pernas dele, para incapacitá-lo.

Fiquei exausto quando terminei. Tinha perdido a conta de quantas vezes desloquei aquele bastão. Meus braços pareciam pesar mais do que todo o resto do corpo. O que me surpreendeu foi minha mãe ter ficado olhando o tempo todo, sem fazer nada. Posei a lanterna sobre o muro, mirada para ela. Quando levei a mão livre ao bastão, ouvi um grito feminino vindo de algum ponto da rua. Por curiosidade, mudei a posição da lanterna, apontando-a na direção aonde o grito tinha se propagado. Burrice. Senti uma pancada forte no peito e fui jogado direto para a rua, sem tocar a calçada. Putz, velho, como doeu aquilo, fodi minhas costas. A lanterna escorregou e caiu na calçada, pude escutar. A luz falhou por uma fração de segundo, e depois ficou firme, se estendendo pela rua. Dava para enxergar algumas coisas próximas. O bastão estava caído perto de mim. Corri para ele e depois para a lanterna. Tentei posicionar a luz para um ponto distante à minha frente e, bingo, minha mãe estava bem diante de mim, preparada para foder minha cabeça com uma pedra, mas alguma coisa acertou suas pernas com força, e ela despencou. Olhei para o lado – era meu irmão.

Olhei para minha mãe caída na calçada e constatei que ela não levantaria tão cedo. Os ossos dela já estavam muito fracos pela idade, e com uma pancada daquelas... Falei para o meu irmão para sairmos dali. Juntos, arrastamos nossa mãe para dentro da casa e deixamo-la trancada lá dentro. Peguei meus chinelos e então nos mandamos pela rua que dava para Jardim Brasil II, mas sem rumo certo.
Ao chegarmos na esquina, vi uma van se aproximando velozmente à nossa direita. Apontei a luz para ela. A van freou bruscamente bem na nossa frente. O motorista colocou o braço para fora da janela e esticou um pouco o pescoço – seu Alexandre.

- Danilo! Entre aí, meu filho! Depressa! – ele pediu agitado. – Quem é esse? Ah, o irmão dele? – disse, após ter ser respondido pela voz de Matheus.
Entramos na van.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Danilo (Relatos)




Capítulo 11. Mau Presságio

É difícil dizer quando isso começou exatamente. Aconteceu muito rápido, e eu percebi tarde demais. Parece que todo mundo percebeu tarde demais.

A propósito, eram dez e meia da manhã quando eu preparava meu desjejum: três pães assados e um copo de café. Não iria matar minha fome – que não era pouca -, mas já estava perto da hora do almoço e por isso não me importei com a quantidade. Depois de comer, fui até a lan house - .net – pesquisar uma baboseira para trabalho. Big era o apelido do cara que costumava atender os clientes no período da manhã. Paguei uma hora e fui acessar a um daqueles PCs cheios de vírus.

Coloquei para baixar o álbum de uma banda de Garage Rock. Talvez seja irrelevante comentar, mas sempre dava alguma merda quando você fazia download de alguma coisa naquela lan. Dessa vez não foi diferente. A janela indicava 93% quando o monitor estalou de repente, e a tela escureceu.

- Porra, que merda foi essa? – Perguntou o cara que estava sentado do meu lado. Eu me segurei para não rir da minha falta de sorte. Ele poderia pensar que eu tava rindo dele, o que não era totalmente mentira. Queda de energia era um troço que acontecia com grande frequência; era uma merda, mas eu não podia fazer nada. Levantei da cadeira. Uma menina perguntou a Big:

- Será que volta rápido?
A cretina perguntou isso. Nunca passou por essa experiência ou então sente prazer de perguntar toda vez que acontece.

- Não sei, visse. - Big respondeu. – Talvez demore a voltar.
Rá! Talvez demore. Senta e espera até amanhã, boyzinha.
Voltei para casa.

No caminho, dei conta de não ter escutado o som de nenhum aparelho de tv e, quando cheguei em casa, não tinha energia. Cacete... Iria me foder por não ter feito o trabalho, mas quem se importava?

Fui ler o livro que eu tinha pedido emprestado a um amigo. Amanhecer era o título, de uma tal de Stephenie Meyer. Desde que li o primeiro, me perguntei por que raios essa mulher não juntou os quatro livros da série em um só, porque a maior parte é enrolação. Para vender mais, é claro. E aquela merda tinha se tornado modinha, era um troço interessante de constatar. Talvez fossem pelos vampiros afrescalhados que brilham sob a luz do sol, ou a própria personagem principal maníaco-depressiva.

Apesar disso, eu lia. Para falar mal de uma coisa dessas é preciso conhecer. E eu já estava no final mesmo. O que é um peido pra quem já está todo cagado? Fiquei jogado na cama, lendo, até a hora do almoço. A energia ainda não tinha retornado, e usei palitos de fósforo para acender o fogão. Minha mãe tinha preparado quase tudo, então só precisei cozinhar algumas batatas para mim. Depois de almoçar, fui ao curso.
Não havia energia lá também.

Não haveria aula. Dia livre... Alguma coisa me intrigava – Que porra tá acontecendo?

No caminho até a parada de ônibus eu escutei partes de conversas. Tudo parecia muito irreal, mas convergia para um único assunto: “Lá em casa faltou energia hoje”.

Essa era a primeira vez que eu desejava chegar lá em casa e ouvir o som de qualquer porcaria que saísse da televisão, até mesmo aqueles programas do ligue para cá e complete a palavra, da redetv.
Mas não aconteceu.
Continuava sem energia. Puta que pariu! Os reptilianos não querem mais controlar a gente?

Tentei não dar tanta importância a isso. Lembrei que tinha acontecido algo parecido havia alguns anos, e não foi apenas uma vez. Porém, costumava acontecer à tarde e durava a noite toda.

Passou um dia... Outro... Mais um. E cadê a luz?

Era impossível se comunicar através da internet, e os telefones estavam mudos. Até por celular estava difícil manter contato. Algumas pessoas comentavam sobre o que poderia estar acontecendo, mas muita coisa do que diziam era fantasiosa o suficiente para não ser levada a sério. Pra piorar, comentava-se que coisas estranhas estavam acontecendo em vários lugares, como Rio Doce, Peixinhos e na praça do arsenal da marinha. Alguns sugeriam que essas coisas estranhas tinham relação com a falta de energia.

Era muita baboseira, mas algumas coisas das quais ouvi me assustaram. Foi numa tarde, quando eu estava conversando com alguns amigos, sentado num dos bancos largos e sinuosos da Praça Alvorada, que ouvi.

- ...Sim, Douglas, aí tu vem citar uma informação de uma merda de slide que tu viu na wikipedia, e quer que eu acredite? – falou um deles.
- E o que tem que seja da wikipedia? – Douglas retrucou. – Isso não quer dizer que a informação não é verdadeira, Matheus. Bota isso na tua cabeça. Assim tu não devia acreditar em nada que digitam lá, né foda.
- E quem disse que eu acredito?
- Ta, Matheus, quero discutir contigo não. Teu pai é foda, ele sabe de tudo mais do que todo mundo, pó.

Aí eu quase que não me aguentei. Aqueles dois viviam em conflito, um não aceitava o que o outro dizia. Era assim quase toda vez que a gente conversava.

Matheus olhou pra mim com cara de quem queria rir mas que achava melhor não. Eu respondi igualmente, e nós três ficamos em silêncio. Alguns segundos depois, quatro caras passaram por nós conversando sobre algo que chamou minha atenção.

- Sério, bicho. Ele disse que o cara tava estranho, os olhos meio avermelhados como se tivesse com conjuntivite. E não dizia nada, só resmungava. Depois o cara pulou em cima de uma senhora e começou a morder ela.
- Ôxi, doido! Que viagem. – respondeu o outro.
- Bote fé. Eu não acreditei muito, não. Mas, porra...

Os caras pararam de andar quando chegaram no muro que cercava o campinho da praça. Dois deles encostaram-se à grade que se estendia em cima do muro, e os outros dois ficaram de frente para eles, de braços cruzados. Continuaram a conversa, mas pouco depois puxaram um papo desinteressante.

- Vocês ouviram? – perguntei a Douglas e Matheus.
- Uhum! – Douglas respondeu. Eu conhecia Douglas de alguns anos. O pessoal costuma o chamar por Noia, um apelido herdado do irmão dele, por assim dizer. Um outro amigo da gente, Marcos, passou a chamá-lo por Noinha, e o negócio pegou. Afinal, eu continuo o chamando pelo nome, como todas as pessoas que conheço. Nunca gostei muito de apelidos. Se eu não souber o nome da pessoa, é inevitável. Mas uma hora tu tem que perguntar a fulano como ele se chama, certo?

- Eu ouvi também. – Matheus respondeu.
- Que vocês acham? – tentei.
- Bicho... – Matheus começou. – eu tô achando que meu pai sabe alguma coisa sobre isso. Ele tá saindo muito, e anda meio estranho.
- Estranho como? – indaguei.
- Tipo, ele tá escondendo alguma coisa. E tá preocupado demais.
- Talvez seja só por causa da falta de energia. – Douglas sugeriu. – Todo munto tá preocupado, pó.
- Ele tá preocupado com isso, sim, mas com outra coisa também. Peguei ele chorando em silêncio, uma vez.

Caralho... Então tinha mesmo alguma coisa acontecendo além do apagão. O que seria? O que o pai de Matheus tinha visto?

A conversa se estendeu, mas não havia nenhuma informação extra. Nem outra conversa interessante para ouvir. Mais uma noite de completa escuridão se ergueu sobre as ruas de Jardim Brasil. As pessoas saíam de suas casas cada uma com uma vela grudada num pires ou no fundo de um copo. Parecia uma procissão. Era ridículo, dessas coisas que só se vê em filmes e livros. Uma rua quase deserta em dias comuns agora parecia uma convocação do Papa numa catedral do Vaticano.

Dormindo eu estava ganhando mais, então fui me deitar. O sono não foi muito agradável. Sonhei que estava sentado no banco da Praça Alvorada e alguma coisa fisgou minha perna. Com o choque da dor, eu sacudi a perna instintivamente e olhei para baixo. Havia um velho abocanhando minha perna, como um cachorro. Tentei chuta-lo, mas não deu em nada. Às vezes parece que a gente perde as forças nos sonhos e fica incapaz de fazer até uma merda fácil dessa.

Chutei de novo. Dessa vez funcionou. O velho largou a perna e cambaleou para trás. Ele tinha arrancado um naco de carne, e minha perna agora ardia horrores. O nojento sorriu com a boca ensanguentada e com carne presa entre os dentes. De repente, ele assumiu a aparência do Papa Bento. Aquilo poderia ser engraçado em outras circunstâncias, mas naquela não era. Para piorar, várias pessoas surgiram por entre as ruas e becos que conduziam à praça. Todas carregando velas. Elas se aproximavam numa lentidão angustiante. Bento engatinhava em minha direção, um sorriso sádico estampando o rosto.

- Vai se foder, seu escroto! – gritei. Eu queria sair dali naquele instante, mas minhas pernas não se movimentavam. Porra, alguma coisa. Por favor.

Comecei a sentir uma pressão no braço. Estava doendo pra burro. A dor aumentou, e parecia não ter limite de subida...

Então acordei, arfando e transpirando feito doido.
Meu braço ainda doía muito, e constatei que era porque eu estava deitado sobre ele. Virei para o outro lado. Que alívio! Apesar de ainda doer, havia um formigamento aliviando a dor aos poucos. Meus batimentos normalizaram. Estendi minha mão para tocar a perna – estava inteira.
Merda. Vai ser foda conseguir dormir de novo.
Estava uma escuridão de breu. Eu fechei os olhos, para tentar dormir de novo, e foi quando aconteceu...

Um barulho de algo quebrando o vidro da janela da sala bruscamente. Meus olhos se arregalaram. Minha mãe, que dormia no quarto ao lado, despejou um grito o qual eu nunca tinha escutado antes – era um grito de horror.
Tateei às cegas, tentando alcançar a estantezinha próxima a cama. Tinha deixado ali uma caixa de fósforos, no alto de uma pilha de livros. Minha mão atingiu uma outra pilha, mais perto da parede. A pilha oscilou, mas não caiu nada. Ali eu podia deslizar os dedos facilmente, para tentar alcançar a caixa de fósforos.

Ouvi outra pancada na sala. Isso foi foda, me assustou de novo. Eu estiquei a mão sobre a outra pilha e acabei derrubando a caixa.

Puta que pariu. Essa porra só acontece comigo.
Esse pensamento me veio por hábito, mas em nenhuma das vezes anteriores eu estava suando frio como naquele instante. As pancadas insistiram dessa vez na parede. Minha mãe suplicava por ajuda, e eu gritei pedindo que se acalmasse. Já era difícil raciocinar tendo que ouvir o barulho de algum viking louco tentando derrubar as paredes da sua casa.

Debrucei-me sobre o chão e tateei freneticamente. Meus dedos roçaram em alguma coisa e a coisa chacoalhou. Deitei a mão ali – era a caixa. Puxei um palito o acendi. A chama fraca iluminou a estantezinha. Ali havia uma vela. Arrebateia- e aproximei o pavio para as chamas, queimando-o. Estendi a vela, indundando o quarto com luz. Meu irmão estava dormindo na outra cama. Na pressa, eu tinha esquecido que ele tava ali. Mas quem imaginaria que o miserável não iria acordar com um barulho daqueles. Qualquer outro dia eu tento com uma britadeira.

- Ei, Elvison! – o sacudi. – Elvison, carai, acorda!
Sacudi com força, e ele acordou.
- Hm? – perguntou. Eu nem me dei ao trabalho de responder. Uma pancada forte na parede fez isso por mim.
- Que porra é essa? – ele perguntou, saltando da cama.
- E eu sei, caralho? Vem, pega esse teu violão velho.
Atravessei a cozinha e peguei a barra de ferro que era usada como travessão na porta. Talvez para dar a sensação de que protegia. Meu pai acreditava naquilo porque era um hábito adquirido na casa dos pais dele.

Pelo menos serviriam dessa vez, mesmo que para um propósito diferente.
A gente se aproximou da sala. A luz da vela conseguia iluminar toda a sala, que era pequena. Tinha vidro espalhado pelo chão e nos sofás. Minha mãe silenciou... Talvez tivesse desmaiado, então não precisei conferir.
A coisa ainda batia na parede e, pelo que pude ouvir, tinha conseguido fazer um buraco.

- Merda... – Sussurrei.
Elvison largou o violão sobre o sofá e retirou a barra de ferro da porta da sala.

Ele estava mais tenso do que eu.
Percebi um movimento lá fora através do buraco da janela. Engoli seco. Um rosto humano apareceu ali, claro como cimento, os olhos vidrados e a boca entreaberta. Um som rouco se desprendeu da garganta dele.
Eu congelei. O que é isso, velho?